Pintura | Ana André
Rigor Vitæ
Há certas imagens que têm ainda, e talvez sempre tenham tido, uma pregnância especial. Imagens que afectam a um nível em que o controlo da racionalidade parece ser de algum modo inoperante. Após o trabalho dos auto-retratos, senti necessidade de compreender a estrutura do corpo, de trabalhar a partir de um modelo, de conhecer a matéria e como se organiza para ser um nariz, uma boca ou orelha, interessei-me pelas tonalidades da pele, depois da carne, dos ossos, orgãos e visceras (talvez porque eram modelos acessíveis). Imagens que, aparentemente sem qualquer estranheza ou extraordinária grandeza, não deixam de nos afectar. Fala-se de impacto, diz-se que chocam, que tocam, que marcam ou que deixam marcas. Impressionam como um forte contacto corpóreo. Há outro movimento que me interessa — poder viajar na pintura, ver o objecto como uma paisagem ou uma arquitectura, percorrer os espaços com o olhar e sentir como se todo o meu corpo estivesse num ponto que se funde no objecto. A escala do corpo e a relação com o objecto. Uma colisão que parece despertar, por um instante, um momento indeterminado de um fluxo onírico que se desconhecia. Pré-racionalidade. Inconsciente — um eco remoto. Uma memória vizinha do instinto, regresso da consciência para perto do vegetal, zona incógnita indistinta de carne e alma.
Grande parte destas imagens invocam elas mesmas um certo tipo de acidente — são assim as imagens da desgraça da vida e da desgraça das coisas ; ruínas, destroços, um cadáver mutilado, a floresta queimada ou destruída. A secreta evocação de que, da natureza ou da cultura, qualquer desastre é sempre um desastre natural. Imanente e iminente. Denotam o poder de um acaso, raro e comum, sobre a vulnerabilidade; também uma certeza latente — a de uma eventual e fatal adversidade que não consiste com a própria existência. Não o que a consome, mas o que cai como surpresa e violência. Não, portanto, a da morte companheira, que mesmo essa tem um nome — antes um acidente essencial. Mesmo a morte, a morte natural, aparece demasiado tarde — é já só um efeito deduzido. Neste curto espaço não tem lugar, nem sequer oportunidade. Depois dela, uma seiva nos tendões que ainda corre. Não há nada a lamentar. Nos trabalhos mais recentes misturo objectos que têm algo em comum com a carne, como as flores (gosto mais de as pintar quando estão a murchar — quando estão frescas parecem plástico), animais (com pêlo ou penas), troncos de arbustos e outras coisas. O que têm em comum? A degradação da matéria, concavidades, buracos, superficies sedutoras.
Talvez por isso, não há ansiedade nem medo perante o espectáculo — pois que tudo já se passou. Como não há modo de chegar a tempo, que mesmo o tempo que decorre é já outro — posterioridade absoluta. Outro metrónomo. Não o tempo pesado e sofrido da solidão, trazido pela morte, mas o tempo da ausência — imensamente povoado. Leve, constante e transparente. Fragmentos. E a transformação não assistida. Nem terror ou o horror são aqui os sentimentos — um estupor quase indiferente. E uma paz evasiva, a paz vazia imediata a uma derrota gratuita; que faz saber que um jogo decorria — num outro tabuleiro. Assim, nada há que se chore. A nódoa e a dor não são interiores nem exteriores. Até então era a imagem exterior do corpo, subitamente entrei no interior. São elas mesmas o exterior e o interior. Detonação crua simultânea, cruzamento imprevisível. Horizontalmente.
Decadência. Desastre e desgraça. A vitória dos elementos. Exposição da fibra nua misturada, que se distende e se contrai, em lenta alteração. Por vezes ainda se solta e cai pedaços de pele, uma pétala ou uma pedra. Tudo isto é confuso, por isso o meu trabalho também é feito de confusão — alguns até lhes chamo “grandes confusões”. A desagregação, a rigidez e o processo de putrefacção, tal como a fragmentação instantânea, são dados imediatos que parecem prescindir e ultrapassar o advento e o evento do fim. O meu método de trabalho é a repetição do gesto, fazer muitas vezes para fazer melhor ou para compreender o que estou a fazer. Posso ver/pintar o mesmo objecto cinquenta vezes sempre de maneira diferente (um dia vejo mais cinzento , noutro mais verde ou castanho , com mais ou menos textura , relacionado com outro, com iluminações variáveis). É um exercício de auto-disciplina. Os novos aspectos da substância vão surgindo atenuados — alteração do cheiro, de consistência, das cores, das texturas. Alteração da ordem. Das relações. Desfiguração. Anonimato. Transfiguração. Espécie de vida sobrenatural. Um acidente que não consiste com a existência. Acontecimento derrogado. Mas que se dá constantemente, aparecendo sempre, inédito fundamental e, porém, como já acontecido.
E há uma frase — não é da minha autoria — que me ocorre frequentemente quando penso no meu trabalho : haverá buracos no espaço que dão para outro lado?
Ana André Manuel Rodrigues
2004
Nota de Imprensa
Pintura
De 13 de Abril a 15 de Maio de 2004
Ana André é natural de Faro (n.1969). Frequentou arquitectura na Universidade Lusíada entre 1989 e 1991, data em que iniciou os estudos em pintura no Ar.Co. em Lisboa; aí concluiu o Plano de Estudos Completo em 1997. Participa em diversas exposições individuais e colectivas e em 2003 regressa a Faro, onde actualmente vive e trabalha. É nesta cidade que, com Vasco Vidigal, funda a Artadentro – Arte Contemporânea em Setembro de 2003.
Ana André é uma pintora por vocação. A sua obra essencialmente intuitiva, opera nas fronteiras entre o clássico e o contemporâneo, o figurativo e a abstracção. A sua pintura é construída pela acumulação de representações de objectos até ao total preenchimento da superfície.
O resultado deste exercício sistemático é uma superfície pictórica densa e expressiva, onde a cor, as texturas e a grande variedade de registos surpreendem e arrebatam fortemente o espectador.
ARTADENTRO
Vasco Vidigal