A Duas Agulhas | Joana Vasconcelos

Valquíria, 2004
Tricot feito à mão, patchwork e PVC, 250 X 250 X 270 cm
Metáfora Prática
O exercício conseguido da arte depende da assumpção de um ponto de vista sobre a experiência da vida na realidade a que acidentalmente se teve direito. Esta não tem cabimento sem um esforço de representação — e não apenas como mera reacção ao que, por vezes de tão patético, se pode tomar como provocação. A metáfora é então um meio de protecção contra o absurdo quando o que está em causa é revelar, expôr e descodificar o que se oculta atrás do que surge como trivial. Sem explicar nem justificar. Resposta e proposta, desafio talvez, sem muita proposição.
Os instrumentos/materiais com que se monta a desmontagem são os do mundo, seus processos e finalidade. Seriação, estridência, arrumação, higiene, o rigor brilhante das aparências e, em surdina, o obscuro e complexo labor do mesmo, multiplicado em variedade, sempre em encenação — gestos e comportamentos. Utopia de ubiquidade e de omni-apropriação. E ao seu serviço toda a simbólica e um imaginário totemizados; fetiches, imagens canonizadas, objectos-mercadoria e o mais que lhes vem agarrado — valores que mobilam e mobilizam a experiência ordinária da vida urbana, burguesa, cosmopolita, num mundo saturado, divergente e concentracionário. Excitação, divertimento, distração, segurança, ocupação. O desejo e neste a tendência para a queda no lugar comum — centrípeta satisfação.
Na revelação operada pela metáfora se mostra o jogo em que está implicada e envolvida a identidade do observador. É perante ela, assim devolvida, que este se pode reconhecer comprometido e (auto) regulado por regras subtis, tão totalitárias quanto eficazes ; regras implícitas que comandam o que e como fazer, dizer, sentir, pensar e agir, e ainda o que não sentir, o que não fazer…
Depois, frente ao desmontado e ao humor lúdico da ironia, o silêncio e o branco emergem por contraste; os do vazio que fica da diagnose e os do caos que se revolve, efeito quase inconsciente, perante o reflexo invertido. O silêncio e o branco de um espelho fora do alcance da visão. Descobre-se aí qual é o ponto de vista — o simples lugar ou o espaço liso, imaculado, para projecção. E o ponto de partida. O sítio nu do sujeito gramatical; não o de toda a identidade, mas de muita daquela que a todos, nalgum momento, pode servir. Portanto, também, ponto de encontro.
É desse lugar primitivo povoado de desocupação que se procede à recolha das partes, peças do mundo quotidiano, como de salvados; canibalismo, retoma, reciclagem. Alegoria da novidade e da sua efemeridade. É daí também que se pode assistir às operações de devolução, por re-enfoque/distorção, que rearticulam, desfuncionalizam e recontextualizam a realidade. O esventrar e o exibir do avesso as rotinas, os segredos e os vícios banais; marcas, sintomas e sinais do que pretende uma dignidade que só se obtém na condição do esquecimento de si.
Correção por obliquidade. Para além de uma semiótica da alienação, e do seu resgate para memória futura — para que não se esqueça em vão —, do trabalho de Joana Vasconcelos creio que é justo deduzir uma afirmação muito própria de um essencial amor de si, que é fundamental preservar, e que passa pela atenção e compreensão das circunstâncias e pela consciência dos valores da cultura branqueados pelo uso. Sem complacência nem neutralidade. Aceitação crítica e auto-crítica: uma philia que não pode manter-se nem sobreviver sem o exorcismo constante da banalidade. A esta a metáfora prática dá uma vida que desconhece.
A alegria da construção no mundo de uma contra navegação.
Manuel Rodrigues, Junho 2004
Nota de Imprensa
A Duas Agulhas
De 3 de Julho a 7 de Agosto de 2004
A ARTADENTRO – Galeria de Arte Contemporânea apresenta pela primeira vez no Algarve, uma exposição de escultura de Joana Vasconcelos. Esta produção Artadentro será apresentada, simultaneamente em dois espaços vizinhos; no espaço da Artadentro e, numa colaboração com a Câmara Municipal de Faro, no da Galeria Municipal Trem.
Joana Vasconcelos (Paris, 1971) vive e trabalha em Oeiras. Frequentou o Curso de Design do IADE (1991/2) e, desde 1989 estuda Desenho e Joalharia no Ar.Co, onde em 1996 termina o Curso Avançado de Artes Plásticas. A partir de 1994, participa em numerosas exposições individuais e colectivas, em projectos de “Arte Pública”, é premiada, integra importantes colecções públicas e privadas, internacionaliza-se e é actualmente representada por galerias em Portugal, Espanha e Brasil. Trata-se pois, de uma das mais importantes escultoras portuguesas da actualidade.
Na Galeria Municipal Trem serão expostas obras que ilustram fases anteriores do percurso da autora. Na Artadentro serão apresentadas obras inéditas da série Valquírias, em que a artista junta, ironicamente, a imagem das divindades femininas – mensageiras de Wotan e figurações do destino na mitologia nórdico-germânica — à “arte” do crochet, com que ainda hoje algumas das nossas contemporâneas executam uma enorme variedade de objectos de utilidade doméstica.
ARTADENTRO
Vasco Vidigal