Rui Vasconcelos exposição individual no Museu Municipal de Faro. 2025
Detalhe de Estudos para natureza de registo, 2025

Rui Vasconcelos

Soluço

Inaugura: 18 de Outubro de 2025 às 17h30
De 18 de outubro até 11 de janeiro de 2026

Museu Municipal de Faro
Praça Dom Afonso III 14, 8000-149 Faro
Horário: 3ª. a 6ª das 10h00 às 17h30 / Sáb. e Dom. das 10h30 às 16h30.
Encerra 2ªs e feriados

É com a apresentação da obra de Rui Vasconcelos (Lisboa, 1967) que finalizamos o ciclo de exposições Reset 23/26, com curadoria da Artadentro e realizado com o apoio do Museu Municipal de Faro.
O texto que segue é a folha de sala, da autoria de Cristina Robalo:

soluço

Pranto entrecortado, perturbação no acto de soluçar, um frémito, um suspiro e/ou movimento do mar a arfar, são alguns dos sinónimos para a palavra ‘soluço’.
Soluço é, assim, um som involuntário do corpo que, quando o diafragma é puxado para baixo do tórax, entre respirações, é atingido por pequenos estalidos de ‘hic-hic’ em cadência, numa duração rítmica, apenas, e durante alguns minutos. A circulação de ar, própria à acção de respirar, é cortada e o movimento de ir-e-voltar sofre uma fractura.

Platão, em O Banquete, elege Aristófanes, como aquele que será interrompido por um ataque de soluços, na sua vez de discursar. Retirando a palavra ao dramaturgo da comédia grega, Platão aponta o corte, a pausa e altera a ordem prevista dos seguintes oradores. Independentemente da ironia, da atrapalhação e, inclusive, da confusão instalada, mesmo sabendo que a palavra será devolvida adiante, o discurso destinado a Aristófanes fica suspenso. É preciso parar! Enquanto isso, observa-se e escuta-se.

*

Imediatamente, a primeira imagem que vem ter connosco, quando desejamos ter acesso a um trabalho de Rui Vasconcelos, aquela que preenche a nossa visão, é a de uma floresta. Desenhada-pintada em encáustica, a floresta é densa, vasta, delicada, organizada em torno de uma clareira, onde árvores, ramos e uma imensidão de pequenas folhas se evidenciam, sobre o espaço do papel.

E se o papel tem importância! Não só no limite da própria imagem da floresta, como também, e sobretudo, na ausência da inscrição que lhe sobeja.

Num processo de diluição, entre pigmento e cera de abelha, o gesto indispensável à encáustica, para que a pincelada não endureça, é um instante. Nesse compasso, com movimentos certeiros, contínuos e dinâmicos, o estado líquido urge pelo tempo de secagem.

Os desenhos a encáustica foram, são ainda, embrião e corpo de trabalho de Vasconcelos.
Agora, na presente exposição, não há encáustica. Na Capela do Museu de Faro, soluço, de Rui Vasconcelos, vem da continuidade de um percurso rigoroso, lento e sincopado.

Dois desenhos, Estudos para natureza de registo, a lápis de cera, representam o mar. Aqui, o tempo é lento e a duração, na tarefa de fazer, é mais sensível, precisamente, pela fragilidade do lápis sólido – a qualquer momento pode quebrar-se.

Desenhados sobre um plano horizontal, ambos os ‘estudos’ são circunscritos por uma moldura traçada a grafite que opera como vestígio do começo. E, no entanto, essa linha define a imagem a ser marcada-delineada. O espaço circundante do papel, que acolhe em si a imagem, fecha-a dentro dele, trazendo a primeiro plano o aveludado de um mar sanguíneo, azul, verde e branco que se abre como guarnição ao apetecível lápis de cera polido: a marca reforça a mancha.

Hoquetus I, II, III, IV e V são os nomes escolhidos para as cinco gravuras também na presente exposição. E ‘Hoquetus’ é uma forma de composição rítmica musical iniciada na época medieval, que tem como tradução mais próxima um soluço. Aqui, na música, altera-se a configuração sonora do soluço, porque é preciso estabelecer o acorde. Para tal, convém não esquecer, esse acorde, na sua síncope melódica, deve possuir uma alternância rápida de um conjunto de notas e de ritmos.

Cada gravura, uma das quais vertical, é constituída por fragmentos, outrora desenhos apresentados em Os últimos dias, Centro de Arte Moderna, Fundação Gulbenkian, Lisboa, 2000. Agora, reproduzidos, esses fragmentos dão a ver a distância e a aproximação entre claridade e obscuridade. Sendo o processo de gravura mais veloz, comparativamente ao acto de desenhar, os resultados da experiência permitem a rápida e eficaz visualização dos trabalhos.

Estas gravuras devolvem um tempo enquanto sucessão e outro enquanto energia e intensidade. Por um lado, o tempo enquanto sucessão é manifesto nos vinte cinco anos que separam Os últimos dias de soluço. Mas não há repetição, nostalgia e/ou qualquer intenção de retomar. Regressa-se ao mesmo local, mas nunca à mesma floresta. Por outro lado, o tempo, enquanto intensidade e energia, à semelhança de um ‘hoquetus’ não se conclui, enquanto está em evidência.

Embora, o tempo nunca se canse de abocanhar a sucessão dos anos, ele encontra uma distensão que ocorre enquanto durar o processo. Um compasso (in)voluntário que, entrecortado, actua para ser vivenciado. Porque afinal de contas, não se sabe como vai acabar! Nem quando!

A ligadura, entre desenho e gravura, firmada pelas linhas prensadas-gravadas, traz à claridade a desconhecida obscuridade, isto é, as zonas escuras e densas mancham e marcam o ritmo de cada trabalho. Através de várias chapas de zinco que, se sobrepõem e se encostam umas ao lado das outras, multiplicam-se as paisagens.

Em Rui Vasconcelos, a sua marca de ourives incide, justamente, na sua resistência às duas formas de tempo nomeadas. Insistir no mesmo modelo, seja pela passagem dos anos, seja pela intensidade e energia, restitui a diluição de uma experiência já muito saturada. Torna o movimento mais fácil, que fica sempre aquém do desejado. O ‘inacabável’ de um estudo, de um desenho, de uma encáustica e/ou de uma gravura, encaminha-se para o desejo de plenitude; contudo, o trabalho, pontuado pelo corte, a pausa, a fractura e, evidentemente, pelo soluço, anuncia transformações: liberdade e espanto.

Oferta
Soluços, de Pixinguinha e Benedito Lacerda, 1949

Cristina Robalo
Outubro, 2025


RUI VASCONCELOS fez a sua formação no Ar.Co em Lisboa. A sua obra integra algumas das mais importantes colecções nacionais de arte contemporânea. O seu trabalho tem sido apresentado desde 1999 em várias mostras da Coleção do CAMJAP (Coleção do Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão) da Fundação Calouste Gulbenkian.